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sexta-feira, 18 de julho de 2003

Reflexos...

  Há muito que me habituei a observar as pessoas no reflexo do vidro do comboio.
  É a forma de o fazer sem que notem em nós, e evitar o desconforto dos acidentais contactos visuais directos. Permite também seguir uma conversa que não nos diz respeito, contemplando o olhar vivo do orador.

  Em geral as pessoas parecem mais bonitas. As imperfeições dos seus rostos são esbatidas pela quase imperceptível ondulação dos vidros. Rostos mais velhos rejuvenescem, sem perderem, no entanto, o respeito que impõem, dos anos de experiência que parecem se ter acumulado em camadas.

  Já observei muita gente. A maioria viaja sozinha, regressando do trabalho. Olhar no vazio, mal se mexem. Aguardam, impávidos, que o comboio chegue ao destino, para se dirigirem para as camionetas, mantendo o mesmo olhar no vazio, apenas mexendo as pernas de uma forma já automatizada.

  Chamo-lhes os cinzentos. Pessoas que vivem os dias iguais uns aos outros, presos numa rotina monótona.

  Sempre me interroguei porquê a vida não pode ser como nos filmes. Se nos filmes somos capazes de fazer tanta coisa, porque não o fazemos na vida real? Se os filmes são os nossos sonhos, porque não os concretizamos?

  Porquê não havemos de viver num musical? Porquê é que no comboio alguém não se levanta de repente e começa a cantar, prontamente acompanhado por toda a gente da carruagem, que se transformam em bailarinos?
  Porquê não somos capazes dos gestos altruístas e heróicos que vemos nos filmes, e que às vezes até nos fazem chorar? Porquê não havemos de ser capazes de tudo por um grande amor, porquê não acreditamos no Amor?
  E porquê não afirmamos a nossa unicidade e características identificadoras, como qualquer personagem principal de um filme?

  Devemos admirar qualquer pessoa que procure ser diferente. Ou melhor, diferentes todos somos, mas que afirmem a sua diferença. Admiremos as pessoas que quebram as monotonia dos cinzentos do comboio, e que até lhes podem provocar alguns risos.
  Não, não temos de estar condenados à realidade que criamos! Podemos sempre recriar! Chega de vida real! Viva o surreal!
  Pintem o cabelo, ajudem um pobre, aqueçam cubos de gelo, vistam-se de robe. Cantem. Andem de lado, comam devagar. Façam um piercing. Cantem. Chamem por "Comboio!" em vez de "Taxi!". Não façam sentido, libertem-se, recriem o mundo à medida que andam. Observem tudo, usem tudo, cantem.
  Mas não o façam por modas! Se todos pintam de azul, pinta de laranja. Se todos pintam, não pintes. Mas se queres pintar, pinta. Se já não se pinta, continua a pintar. Canta.
  Não façam o que este post diz. Façam o que vos der na gana.

  Sejam diferentes, mas sejam vocês mesmos. Mudem o mundo, mas não mudem o «Eu». Recriem, recriem, recriem.

  Podemos ser diferentes de muitas maneiras...
  Ontem vi mais um reflexo... No vidro separador entre as cadeiras e a porta, vi, muito esbatido, o revisor. Homem já dentro dos 50. Falava vivamente com um passageiro, que viajava sem bilhete.

  «Não se preocupe! Nós somos humanos! Se bem que é um problema de muitos na nossa classe. Há colegas que fazem só o que lhes mandam. Depois trabalham como autómatos, perde-se a humanidade. Não pode ser!»

  «Há diversas situações que temos em conta. Em primeiro lugar os toxicodependentes... Ora, nós sabemos que todo o dinheiro que arranjam é para o vicio, como é que podem pagar o bilhete? Andavam de comboio como?
  E para quê outras medidas? Qual vai ser o juiz que vai obrigar alguém a pagar uma multa, no estado em que aquele homem está?»

  «Depois a comunidade de etnia Africana. São gente desenraizada! Os Africanos, os de Leste, Sul Americanos e qualquer outros! Quando alguém sai da sua terra fica desenraizado, é claro. E enfrentam muitas dificuldades aqui.
  E não é que muitos não tenham dinheiro para pagar. Mas para que vamos identifica-los? Dão-nos uma morada, "Praceta da Índia, número tal", por exemplo... Passados anos, quando o tribunal os chama (sim, porque chega a demorar 3 ou 4 anos), já eles não vivem lá, voltaram para a sua terra.»

  «E há ainda os outros. Mas procuramos analisar caso a caso. Temos de ser humanos. Em principio, se o passageiro colaborar, tudo se resolve bem.»

  O trabalho deste homem é de andar o dia inteiro para cima e para baixo num comboio. Dando possibilidade, aos que podem, de exibir o seu titulo de transporte válido, e dando compreensão e um sorriso aos que infelizmente não podem.
  Ao longo do dia encontramos poucas pessoas que realmente merecem o ordenado que recebem. Este merece-o, e ainda mais.

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