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domingo, 19 de outubro de 2003

Amor, por Antero de Quental...

Abnegação

Chovam lírios e rosas no teu colo!
Chovam hinos de glória na tua alma!
Hinos de glória e adoração e calma,
meu amor, minha pomba e meu consolo!

Dê-te estrelas o céu, flores o solo,
cantos e aroma o ar e sombra e palma,
e quando surge a lua e o mar se acalma,
sonhos sem fim seu preguiçoso rolo!

E nem sequer te lembres de que eu choro...
Esquece, até, esquece, que te adoro...
E ao passares por mim, sem que me olhes,

possam minha lágrimas cruéis,
nascer sob os teus pés flores fiéis,
que pises distraída ou rindo esfolhes!
Idílio

Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
Colher nos vales lírios e boninas,
E galgamos dum fôlego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas;

Ou, vendo o mar, das ermas cumeadas,
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruínas
Ao longo, no horizonte, amontoadas:

Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Não sei que luz no teu olhar flutua;
Sinto tremer-te a mão e empalideces...

O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.
Ideal

Aquela, que eu adoro, não é feita
De lírios e nem de rosas purpurinas,
Não tem as formas lânguidas, divinas,
Da antiga Vénus de cintura estrita...

Não é a Circe, cuja mão suspeita
Compõe filtros mortais entre ruínas,
Nem a Amazona, que se agarra às crinas
Dum corcel e combate satisfeita...

A mim mesmo pergunto, e não atino
Com o nome que dê a essa visão,
Que ora amostra ora esconde o meu destino...

É como uma miragem, que entrevejo,
Ideal, que nasceu na solidão,
Nuvem, sonho impalpável do desejo...
Beatrice

Depois que dia a dia, aos poucos desmaiando,
Se foi a nuvem de ouro ideal que eu vira erguida;
Depois que vi descer, baixar do céu da vida
Cada estrela e fiquei nas trevas laborando:

Depois que sobre o peito os braços apertando
Achei o vácuo só, e tive a luz sumida
Sem ver já onde olhar, e em todo vi perdida
A flor do meu jardim, que eu mais andei regando:

Retirei os meus pés da senda dos abrolhos,
Virei-me a outro céu, nem ergo já meus olhos
Senão à estrela ideal, que a luz do amor contém...

Não temas pois - Oh vem! o Céu é puro, e calma
E silenciosa a terra, e doce o mar, e a alma...
A alma! não a vês tu? mulher, mulher! oh vem!
[Amor por Antero de Quental (05/11/1998)]
  Antero de Quental não me parece ter uma ideia exacta de amor. Sendo um realista, Quental não consegue exprimir a sua emotividade. O seu carácter fundamentalmente pensador e conceptualizador tenta racionalizar o amor, coisa extremamente difícil, senão impossível.

  Os seus sonetos reflectem apenas anseios e abstracções sobre o problema, não sendo, cada um deles, mais do que diferentes teses. “Abnegação” defende o amor unilateral, baseado no sacrifício de apenas um em relação ao outro. No entanto, em “Idílio” define o amor como a contemplação silenciosa entre os dois. E no “Ideal” a sua amada já é algo indefinível, algo que o ultrapassa e que ele aceita como sendo o tudo, ou o ideal.

  Sem grande imaginação do ponto de vista linguístico, recorre muito aos lugares comuns, ou topos, como se vê nos “lírios” presentes em quase todos os poemas, ou nos desejos demonstrados pelo sujeito poético de “Abnegação”, que são uma enumeração de diversos lugares comuns poéticos.

  O que mais difere destes é o “Ideal”. Neste Quental nega os topos para afirmar o seu amor. A sua amada não é tudo aquilo que ele negou. Ela é única. A ideia da negação para a afirmar dá-nos inclusive a sensação que se ela não é aquilo negado, então é porque é mais. No entanto a negação dos lugares comuns não é a utilização deles? Claro que sim. Mais uma vez Quental socorre-se deles, apesar de negá-los, para definir o seu amor.

  Isto tudo deve-se à óbvia dificuldade que há em definir racionalmente o amor. O próprio Camões, renascentista, logo adepto da racionalidade, utiliza antíteses para o definir, que é talvez a mais forte afirmação de irracionalidade, pois aproxima dois conceitos opostos.

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