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segunda-feira, 13 de outubro de 2003

Uxte... [3]

  Hoje era para simplesmente deixar aqui mais um poema de Pessoa, mas depois de me terem chamado a atenção para isto, voltei a ir aos meus arquivos.
  Pouco tenho a acrescentar ao que a Carla disse. Estou perplexo.

[Auto da Barca do Inferno (18/04/1996)]
Argumento  Auto composto pelo grupo já habitual, com a contemplação da sereníssima e mui grande dona Sofia, e apresentado ao poderoso príncipe nono, primeiro desta Escola, deste ano.
  Começa a declaração e argumento da obra. Fegura-se que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos subitamente a um aeroporto, no qual per força temos que em um de dois aviões viajar, scilicet, um deles passa pera o Paraíso e outro pera o Inferno. No do Paraíso encontra-se um anjo; no do Inferno o diabo e seu companheiro.
   O entrelocutor é um deputado que chega com um alfaiate que lhe tira as medidas e leva na mão um conjunto de gravatas. E começa o diabo antes que o deputado chegue.
DiaboVê lá se está tudo em ordem. Depressa, preguiçoso.
CompanheiroPronto! Pronto! Não sejas tão trigoso[1].
DiaboCalado! Que ousadia. No entanto estou.
Nunca mais chega alguém que tenha pecado para chatear.
CompanheiroTende calma que alguém há-de aparecer.
E com tantos lugares, muitos hão-de ser.
DiaboSim. Graças à nossa pseudo-igreja comprámos jactos.
Hi hi hi hi... Os estúpidos dos fieis caíram como patos.
CompanheiroOlhai que lá vem um!
DiaboQue dizes? Hum?[2]
CompanheiroLá ao fundo no horizonte.
Mesmo ao pé daquele monte.
Tratai vós do assunto,
enquanto eu como um presunto.
   Vem o deputado e, chegando ao avião infernal, diz:
DeputadoOlhe, desculpe. Pode-me dizer para onde vai este avião?
DiaboVai prá tua Terra Maldita, para lá do Ceilão.
DeputadoMinha terra? Que me quereis transmitir?
DiaboQue para o Inferno vais ter que ir.
DeputadoUxte![3] Estais doido?! Um amigo do povo como eu?
DiaboAmigo do povo!? Ha ha... Amigo é ele que te elegeu.
Não sabiam eles o mal que iria fazer.
DeputadoMas... Sem mim muitas moções iriam perder.
Moções de extrema importância para o país.
DiaboNão votaste a favor pelos teus ideais.
Só para os lideres do partido agradar,
ou para os teus bolsos rechear.
DeputadoVós sois mui grosseirão!
Não pertenceis à oposição?!
Deixai-me daqui retirar.
Outro destino vou procurar.
DiaboPodeis ir. Acabarás por voltar.
Ao destino ninguém pode escapar.
   O deputado caminha até chegar ao aeroplano do Paraíso. Ouve-se uma TV. Chama o anjo gritando.
DeputadoHou de bordo! Desligai a televisão. Vinde cá fora.
AnjoAgora não posso! Não vês que está a dar bola?!
DeputadoPor favor. Preciso urgentemente de lhe falar.
AnjoArgh... Joane! Se for golo vem me chamar.
Que de tão importante tens para me dizer?
DeputadoAquele outro piloto não deve saber ler.
Disse que na lista era condenado.
AnjoNão estou a ver nada de errado.
DeputadoMas eu, que sou representante do povo,
vou no Inferno ser frito como um ovo?
AnjoNo paraíso não entra quem aceita subornos.
E isso é coisa que fizeste sem parar.
DeputadoVê-se mesmo que não tem jeito para rimar.
O dinheiro que recebi foi para uma instituição.
AnjoSim, sim... Ouvi falar. Um tal Bingo de Portimão.
E com parte do dinheiro que lá ganhaste,
tu próprio outras pessoas subornaste.
E o pior foi que às pessoas que te elegeram
desprezaste-as, não as representaste.
Achaste-te a elas superior, mas enganaste-te.
São elas que mandam em ti, não o contrário.
Hprum... Representa o povo. Deve julgar que sou otária.
DeputadoOiça-me... Se quiser adianto-lhe uma maquia.
Olhe que conheço gente desde o Guterres ao Melancia.
AnjoSaia-me daqui. Você é uma vergonha prá democracia.
DeputadoIsto é uma injustiça. Estão a discriminar pessoas de bem.
Querem dividir a nossa sociedade. Isto devia ser decidido pelo povo.
Diga Sim ao referendo. O povo unido, jamais será fo... (é interrompido pelo Diabo)
DiaboAlto e pára o baile. Mas que barulheira vem a ser esta?
Nós aqui não queremos revolucionários. Vamos... para a barca.
(o diabo leva-o para a barca; enquanto é transportado, continua a refilar)
CompanheiroQue vergonha. Assim é que se vê: o mal não está na política, mas sim nas pessoas.

[1] Apressado
[2] Onde?
[3] Arreda-te!

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