Uxte... [3]
Hoje era para simplesmente deixar aqui mais um poema de Pessoa, mas depois de me terem chamado a atenção para isto, voltei a ir aos meus arquivos.
Pouco tenho a acrescentar ao que a Carla disse. Estou perplexo.
[Auto da Barca do Inferno (18/04/1996)]
[1] Apressado
[2] Onde?
[3] Arreda-te!
Argumento | Auto composto pelo grupo já habitual, com a contemplação da sereníssima e mui grande dona Sofia, e apresentado ao poderoso príncipe nono, primeiro desta Escola, deste ano.
Começa a declaração e argumento da obra. Fegura-se que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos subitamente a um aeroporto, no qual per força temos que em um de dois aviões viajar, scilicet, um deles passa pera o Paraíso e outro pera o Inferno. No do Paraíso encontra-se um anjo; no do Inferno o diabo e seu companheiro. |
O entrelocutor é um deputado que chega com um alfaiate que lhe tira as medidas e leva na mão um conjunto de gravatas. E começa o diabo antes que o deputado chegue. | |
Diabo | Vê lá se está tudo em ordem. Depressa, preguiçoso. |
Companheiro | Pronto! Pronto! Não sejas tão trigoso[1]. |
Diabo | Calado! Que ousadia. No entanto estou.
Nunca mais chega alguém que tenha pecado para chatear. |
Companheiro | Tende calma que alguém há-de aparecer.
E com tantos lugares, muitos hão-de ser. |
Diabo | Sim. Graças à nossa pseudo-igreja comprámos jactos.
Hi hi hi hi... Os estúpidos dos fieis caíram como patos. |
Companheiro | Olhai que lá vem um! |
Diabo | Que dizes? Hum?[2] |
Companheiro | Lá ao fundo no horizonte.
Mesmo ao pé daquele monte. Tratai vós do assunto, enquanto eu como um presunto. |
Vem o deputado e, chegando ao avião infernal, diz: | |
Deputado | Olhe, desculpe. Pode-me dizer para onde vai este avião? |
Diabo | Vai prá tua Terra Maldita, para lá do Ceilão. |
Deputado | Minha terra? Que me quereis transmitir? |
Diabo | Que para o Inferno vais ter que ir. |
Deputado | Uxte![3] Estais doido?! Um amigo do povo como eu? |
Diabo | Amigo do povo!? Ha ha... Amigo é ele que te elegeu.
Não sabiam eles o mal que iria fazer. |
Deputado | Mas... Sem mim muitas moções iriam perder.
Moções de extrema importância para o país. |
Diabo | Não votaste a favor pelos teus ideais.
Só para os lideres do partido agradar, ou para os teus bolsos rechear. |
Deputado | Vós sois mui grosseirão!
Não pertenceis à oposição?! Deixai-me daqui retirar. Outro destino vou procurar. |
Diabo | Podeis ir. Acabarás por voltar.
Ao destino ninguém pode escapar. |
O deputado caminha até chegar ao aeroplano do Paraíso. Ouve-se uma TV. Chama o anjo gritando. | |
Deputado | Hou de bordo! Desligai a televisão. Vinde cá fora. |
Anjo | Agora não posso! Não vês que está a dar bola?! |
Deputado | Por favor. Preciso urgentemente de lhe falar. |
Anjo | Argh... Joane! Se for golo vem me chamar.
Que de tão importante tens para me dizer? |
Deputado | Aquele outro piloto não deve saber ler.
Disse que na lista era condenado. |
Anjo | Não estou a ver nada de errado. |
Deputado | Mas eu, que sou representante do povo,
vou no Inferno ser frito como um ovo? |
Anjo | No paraíso não entra quem aceita subornos.
E isso é coisa que fizeste sem parar. |
Deputado | Vê-se mesmo que não tem jeito para rimar.
O dinheiro que recebi foi para uma instituição. |
Anjo | Sim, sim... Ouvi falar. Um tal Bingo de Portimão.
E com parte do dinheiro que lá ganhaste, tu próprio outras pessoas subornaste. E o pior foi que às pessoas que te elegeram desprezaste-as, não as representaste. Achaste-te a elas superior, mas enganaste-te. São elas que mandam em ti, não o contrário. Hprum... Representa o povo. Deve julgar que sou otária. |
Deputado | Oiça-me... Se quiser adianto-lhe uma maquia.
Olhe que conheço gente desde o Guterres ao Melancia. |
Anjo | Saia-me daqui. Você é uma vergonha prá democracia. |
Deputado | Isto é uma injustiça. Estão a discriminar pessoas de bem.
Querem dividir a nossa sociedade. Isto devia ser decidido pelo povo. Diga Sim ao referendo. O povo unido, jamais será fo... (é interrompido pelo Diabo) |
Diabo | Alto e pára o baile. Mas que barulheira vem a ser esta?
Nós aqui não queremos revolucionários. Vamos... para a barca. (o diabo leva-o para a barca; enquanto é transportado, continua a refilar) |
Companheiro | Que vergonha. Assim é que se vê: o mal não está na política, mas sim nas pessoas. |
[1] Apressado
[2] Onde?
[3] Arreda-te!
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